“Eu gostaria muito que ela aprendesse a ler e escrever. Eu acho que ela tem potencial. Porém, é o que eu tenho pra hoje, né? E eu gosto dela lá na Apae, porque lá eu sei que ela tá segura.”
O relato é de Maria Aparecida Nunes, que há mais de dez anos deixou de insistir na busca pela inclusão de sua filha com síndrome de Down em escolas da rede pública. A saída foi partir para uma sala especial –onde estudam apenas pessoas com deficiência– da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae).
Esther Nunes, de 22 anos, cursou até a 3ª série do Ensino Fundamental – atualmente, o 4º ano – em uma escola da rede municipal. Durante esses anos, ela e a mãe conviveram com a dor do bullying. A menina chegava em casa chorando, com os vestígios das bolinhas de papel arremessadas por colegas na mochila. As duas também lidaram com o despreparo dos professores, quando todos os outros alunos tinham atividades para fazer, menos Esther. Sem contar o medo da mãe de deixar a filha sozinha na escola, exposta a situações de abuso.
“Se pra ela aprender a ler e escrever for ter esse preço, pra mim, eu prefiro ela assim, porque pelo menos eu me sinto segura, eu me sinto tranquila”, diz a mãe, que admite que o processo de adaptação na Apae também não foi fácil. “Ela chorava e eu chorava também”.
Esse sentimento de segurança segue com prazo determinado, já que na Apae de São Caetano do Sul, região metropolitana de São Paulo, onde Esther estuda, os alunos podem permanecer até os 29 anos. A mãe gostaria que a menina pudesse seguir seus sonhos com autonomia, como tirar habilitação e começar uma faculdade. Mas, por agora, a resposta para o futuro ainda se esbarra no “não sei”.
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Força da Apae
Esther representa uma matrícula entre as mais de 101.384 espalhadas em 1.298 escolas especializadas da instituição, segundo dados atualizados da Federação Nacional das Apaes (Fenapaes) obtidos pelo Terra. Entre as opções de escolas especializadas, só a Apae concentra cerca de 66% de todos os estudantes com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento da educação básica que não estão em classes comuns, ou seja, inclusivas.
A quantidade de alunos segregados, assim como de instituições que promovem esse tipo de sala, é a menor desde 2008, quando o Brasil passou a seguir a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, proposta pela Organização das Nações Unidas (ONU), junto a outros países. O compromisso de assegurar o direito a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, para todas as pessoas, consta como emenda constitucional. Além disso, foi reforçado em 2015 com a instituição da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Esses 15 anos levaram 90% (1.372.958) dos estudantes com deficiência às salas comuns. O compromisso do atual governo, segundo Décio Guimarães, diretor de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva do Ministério da Educação (MEC), é de que 100% dos alunos da educação básica estejam usufruindo da educação inclusiva em três anos.
“Uma coisa que é inegociável é a presença das pessoas públicas da educação especial no contexto da escola regular. E é o princípio da não discriminação”, diz Guimarães, em entrevista exclusiva ao Terra. “Não existe política do ministério que leve recurso para escola exclusiva”.
Mas, na prática, como apurado pela reportagem, há Apaes que resistem a esse fluxo de mudanças e, de certa forma, burlam as diretrizes da educação básica, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O fator de corte orçamentário do governo a instituições do tipo também é controverso, sem transparência e detalhamento.
Por dentro da Apae
A reportagem do Terra visitou a Apae de São Caetano em agosto, quando conheceu a história de Esther, que estuda desde os 10 anos na unidade. Desenhos, pinturas e artesanatos coloridos feitos por professores e alunos contrastam os tons de cinza das salas e corredores. A unidade se considera referência em educação no estado de São Paulo.
A diretora da filial, Ana Paula Haussauer, e a coordenadora pedagógica, Suely Martinez do Rosário, explicam que os convênios com as instâncias municipais e estadual não encaminharam mais alunos da faixa etária de escolarização para a unidade desde a LBI, de 2015. “Foram só saídas”, diz Ana Paula.
Mesmo assim, segundo elas, o direcionamento de verba para os alunos que já estavam na Apae antes de 2015 segue ativo. Mas com a redução do quadro de alunos e, consequentemente, a redução do orçamento, tem sido difícil pagar os professores e profissionais envolvidos na área educacional. A saída é investir em eventos e arrecadações, elas dizem.
- • A unidade é voltada ao Ensino Fundamental e funciona pelo nome de Escola de Educação Especial ‘Helena Pereira de Moraes’. Há uma turma de Fundamental I, que abrange do 1º ao 5º ano, com sete alunos matriculados. A faixa etária dessa turma vai de 7 a 14 anos, mas, entre os matriculados, há apenas jovens de 13 e 14 anos.
- • Outro programa da unidade, também voltado para o Ensino Fundamental, é o Programa Socioeducacional. Nesse caso, são 9 turmas, divididas entre os períodos da manhã e da tarde, que somam 88 alunos. As salas –com limitações de 12 alunos– reúnem pessoas de 15 a 29 anos.
‘Apae não alfabetiza’
“Eles não têm condição, por isso estão aqui”, foi o que respondeu a coordenadora pedagógica Suely Martinez do Rosário, ao ser questionada se os alunos das classes especiais são alfabetizados. O motivo, segundo ela, é pelo laudo médico e cognitivo de deficiência intelectual.
Durante a visita na unidade, a reportagem pôde conversar com alguns professores. Um deles, que trabalha com alunos com paralisia cerebral, deficiência intelectual e diagnosticados com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), disse realizar atividades com o alfabeto móvel. Além disso, a alfabetização é trabalhada em meio a atividades lúdicas e sensoriais, como aquelas com uso de tinta.
A gente não alfabetiza, a Apae não alfabetiza. Porque todos [matriculados na unidade] precisam de um apoio permanente-pervasivo. O cognitivo deles não permite que eles avancem. Então, todos os dias você vai falar a mesma coisa, falar o mesmo conteúdo, porque eles não conseguem assimilar – Suely Martinez do Rosário, coordenadora pedagógica da Apae de São Caetano (SP)
Procurada pelo Terra, a Federação das Apaes, de instância nacional, afirmou que a alfabetização é da responsabilidade de todas as escolas que ofertam a educação básica, sejam comuns ou especiais. “Alunos com ou sem deficiência têm o direito de serem alfabetizados, respeitados seus ritmos, possibilidades e necessidades”, diz a nota.
Também não tem diploma
A filial de São Caetano diz seguir as diretrizes do MEC, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mesmo sem garantir a alfabetização. Como não há formação, os profissionais e representantes da unidade ouvidos pela reportagem disseram que os alunos não recebem qualquer diploma.
A instância nacional das Apaes explica que as escolas especiais das unidades geralmente são autorizadas a funcionar ofertando até o 5º ano, última série do Fundamental I. A partir de então, o aluno é transferido para completar seus estudos em outras escolas. Para isso, os responsáveis devem apresentar documentos de transferência e histórico escolar ou relatório de estudos.
“Por ser uma escola para alunos com deficiência intelectual e múltipla com necessidades de apoios intensos, é permitida essa forma de encaminhamento”, complementa a federação.
Mas, em São Caetano, o sistema não busca direcionar os alunos para salas comuns em nenhum momento. Isso porque, como explicou a diretora da unidade, os alunos do Fundamental I passam para as salas do Programa Socioeducacional ao completarem 15 anos.
Pra quem vem de fora, essa turma aceita estudantes a partir dos 18 anos, pois a escolarização obrigatória é até os 17. Essa modalidade, que é similar a um Educação de Jovens e Adultos (EJA), conta com encaminhamentos feitos por meio de um convênio com a Secretaria de Educação de São Caetano.
A partir de então, o fluxo é o seguinte:
- • Depois dos 29 anos, último ano permitido para seguir no Programa Socioeducacional, os estudantes podem se tornar assistidos do Grupo de Convivência da Apae, uma instância do setor de assistência social que não tem limite de idade. Atualmente, há 83 adultos nessa modalidade.
“É um caso eterno. A gente nunca dá uma terminalidade específica. Depois dos 30 anos, ele vai para a Convivência [grupo da assistência social] e vai…”, diz a diretora.
Dos 7 aos 29, mesma grade
A grade curricular da escola da Apae de São Caetano é definida como ‘adaptada’. Por causa da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as nomenclaturas seguem como ‘Português’, ‘Matemática’, ‘História’ etc. Na prática, no entanto, dizem “trabalhar com o concreto” — e é seguido o mesmo padrão para todos do Ensino Fundamental.
Muito é feito na chamada Sala Experimental. O espaço funciona como uma casa, com quarto, banheiro, área de serviço e cozinha. A maioria das aulas da grade são realizadas lá, por meio de atividades que têm como objetivo auxiliar na vida prática do aluno com deficiência, por mais que isso, desta forma, não esteja previsto na BNCC.
“A gente tem que seguir Matemática, Português, Ciências, História, Geografia, Educação Física, Informática e Artes, tudo como se fosse uma escola de educação normal, ensino regular. Porém, a gente faz através do desenvolvimento das habilidades deles. Vai aprender Português através de uma receita. Ciências, Matemática, através da receita”, descreve a coordenadora pedagógica.
Pelo documento de horários das aulas ao qual o Terra teve acesso, também foi possível notar que parte das aulas de Ciências, por exemplo, são voltadas a brincadeiras no jardim sensorial da unidade.
“Todas as unidades educacionais da Rede Apae Brasil recebem da instituição as mesmas diretrizes e são orientadas a seguir as normas educacionais de seu Estado e/ou município, conforme as diretrizes nacionais das etapas e modalidades da educação básica. A autonomia existe quanto às estratégias, ações e práticas pedagógicas”, aponta a Fenapaes.
Apae na perspectiva inclusiva
Antes mesmo do lançamento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI), a Apae de Salvador (BA) deu um passo à frente na inclusão e em 2006 transformou sua escola especial em Centro Educacional Especializado (Ceduc). Atualmente, a unidade atende cerca de 250 alunos, que realizam ali apenas o Atendimento Educacional Especializado (AEE) no contraturno escolar.
A reportagem também visitou a unidade em agosto. Lá, conversou com a pedagoga Ana Beatriz Araújo, defensora da inclusão, que trabalha na Apae de Salvador há 21 anos. Ela acompanhou de perto o processo de transição para Ceduc e defende que, desde a época em que o espaço funcionava como escola especial, o movimento “Apaeano” nunca foi excludente ou de segregação.
Segundo especifica a página institucional da Apae de Salvador, a mudança de escola especial para Ceduc foi orientada pela Declaração de Salamanca da ONU, de 1994, que estabelece regras e padrões para a educação de pessoas com deficiências. Além disso, baseou-se na legislação brasileira, em especial a resolução federal nº 4, de 2 de outubro de 2009, que institui as diretrizes para o Atendimento Especializado na Educação Básica e prevê que este atendimento poderá ser feito em instituições filantrópicas.
A regulamentação também ocorreu a nível estadual, visto que a Bahia, em 2009, publicou uma resolução com as normas para a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva.
As Apaes acolheram os alunos e forneceram atendimento educacional, serviço educacional, quando as escolas, todas as escolas, fecharam as portas. Então, foram as primeiras iniciativas buscando preparar esses alunos para a vida em sociedade. – Ana Beatriz Araújo, pedagoga que trabalha na Apae de Salvador
Décio Guimarães, diretor do MEC, confirmou que as Apaes estão autorizadas a funcionar oferecendo AEE no contraturno escolar, e que estas unidades receberiam recursos do governo federal através do Programa Dinheiro Direto nas Escolas. Mas Guimarães não soube detalhar tais recursos, por ser, segundo ele, de responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O Terra entrou em contato com o FNDE, mas não teve retorno.
Já quando o assunto são as Apaes e outras instituições que promovem classes especiais, que segregam alunos, Décio negou, em entrevista exclusiva ao Terra, haver qualquer repasse de recurso do governo federal. Porém, conforme apurado pela reportagem, os dados vão em outra direção.
No dia a dia
As crianças e adolescentes que frequentam o Ceduc da Apae Salvador vestem uniforme, são chamados de alunos e se divertem no horário do intervalo. A maior diferença em relação a uma escola comum é que o Atendimento Educacional Especializado funciona por oficinas. A principal delas é a de comunicação e linguagem, base do Atendimento Educacional Especializado, segundo explica Ana Beatriz.
Os alunos são divididos em turmas, conforme faixa etária e grau de severidade da deficiência intelectual. Nas portas de cada sala, há uma lista com os nomes e as idades dos alunos. Praticamente não há diferenças maior que dois anos entre as idades dos estudantes.
A Apae de Salvador estabeleceu ainda uma relação de parceria com as escolas regulares onde estudam os alunos matriculados na instituição. Nesta unidade, os professores do Ceduc atuam também no chamado “Programa de Apoio à Inclusão Escolar”, que recebe, em ao menos quatro eventos anuais, os educadores das escolas parceiras para oficinas e formações voltadas para a prática inclusiva.
Antiga Apae de São Paulo
Outro caso inclusivo é o do Instituto Jô Clemente, antiga Apae de São Paulo, que deixou as salas especiais de lado e passou a oferecer apenas o Atendimento Educacional Especializado (AEE) no contraturno escolar. Ainda como Apae, a mudança em prol da inclusão se efetivou em 2011, após a Convenção da ONU. A instituição mudou de nome oito anos depois, em 2019, para ampliar ainda mais seus serviços.
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A Apae de São Paulo atendia 160 crianças de 7 a 14 anos em 2008, último ano que manteve classes especiais. A escola, credenciada pela Secretaria Estadual de Educação, seguia o currículo e as diretrizes do MEC. Após o final do ciclo do Fundamental I, relembram que ofereciam um Histórico Escolar com todas as descrições das atividades realizadas, assim como as necessidades de apoio do estudante.
De acordo com a Federação das Apaes, 34 escolas especiais da organização deixaram de existir entre 2021 e 2022, saindo de 1.332 para 1.298. Paralelamente, 38 filiais passaram a oferecer o AEE no mesmo período, ampliando de 827 unidades educacionais em 2021 para 865 em 2022.
Atualmente, o IJC funciona de segunda a quinta-feira, com 8 horas de atendimento por dia. Nas sextas-feiras, os professores do AEE realizam articulações com as escolas em que os respectivos alunos estão matriculados.
No Atendimento Educacional Especializado a gente consegue olhar a individualidade de cada aluno e perceber as habilidades daquela criança. Com a perspectiva inclusiva a gente consegue olhar as potencialidades e, a partir disso, proporcionar condições dela eliminar barreiras para que tenha acesso a todos os espaços na sociedade, inclusive a própria educação
Na unidade, são atendidas 160 crianças. Mas, contando os outros três núcleos espalhados pela cidade, 320 estudantes são matriculados no AEE pelo instituto. Em todos os casos, o convênio é com a Prefeitura de São Paulo, que dá suporte às escolas que não possuem Salas de Recursos Multifuncionais e professores de AEE próprios, como explica Tatiana Sampaio Paixão, coordenadora pedagógica do AEE do Instituto Jô Clemente.
* Essa é a primeira matéria da série especial Educar para Incluir, que faz uma imersão na educação inclusiva no Brasil a partir da história de alunos com deficiência ou com superdotação — afetados, todos os dias, pelos êxitos ou falhas de governos e redes escolares. Acesse aqui.
- •Reportagem: Beatriz Araujo, Maria Clara Andrade e Marcela Coelho
- •Edição de vídeo: Luis Nascimento
- •Revisão: Estela Reis
- •Supervisão: Larissa Leiros Baroni
- •Tradutora de Libras: Jéssica Nascimento Moura