Diversos projetos de lei tramitam no Congresso com o intuito de modificar a forma que os medicamentos são fabricados e vendidos no Brasil. Seja com interesses econômicos ou pensando na saúde da população, deputados e senadores movimentaram as casas legislativas para alterar ou criar leis. De outro lado, indústria e farmácias de todo país têm acompanhado as proposições para tentar contribuir com as discussões ao trazer diferentes perspectivas, além de apresentar demandas de regulamentação.
Um exemplo que veio do legislativo é a proposta que tramita no Senado para obrigar a venda fracionada de medicamentos. A ideia é tornar compulsório que drogarias forneçam apenas os comprimidos necessários para o tratamento de cada paciente. Contudo, entidades afirmam que o Brasil não tem estrutura para realizar tal separação de forma segura e que garanta a qualidade dos produtos.
Por outro lado, o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) e a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) são algumas das entidades que têm levado demandas que podem mudar o cenário da saúde. Apesar de haver debates na esfera pública, a expectativa é que ações efetivas sejam tomadas. Dentre as solicitações, está a revisão da precificação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e da resolução que define boas práticas farmacêuticas, produzida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2009 e que se encontra desatualizada. Ambos são tidos como entraves para inovação em produtos e funcionamento de novos negócios.
“Temos conversado com a nova secretária-executiva da CMED, Daniela Marreco Cerqueira. É óbvio, ela assumiu há poucos dias e está arrumando a casa que tinha alguns problemas, mas sem dúvida nenhuma essa é uma discussão que continua sempre. Porque o mercado evoluiu, não é o mesmo mercado quando foi feita a resolução da precificação. A norma legal precisa ficar muito próxima do que acontece no dia a dia, porque senão ela começa a complicar a vida de todo mundo, e é o que acontece hoje”, avalia Nelson Mussolini, presidente do Sindusfarma.
Para as farmácias, ainda existe a necessidade de revisitar a regulamentação sobre as prescrições digitais, autorizada no início da pandemia de Covid-19. “É um assunto que precisa ter uma regulamentação séria pelo Congresso. Hoje em dia não há regulamentação, tem plataforma vendendo medicamento pelo consultório médico, que é uma prática vetada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Tem que discutir e avançar”, relata Sergio Mena Barreto, CEO da Abrafarma.
Medicamentos fracionados
O Projeto de Lei n° 2881, de 2023, visa a tornar obrigatório o fracionamento de medicamentos. Atualmente, aguarda designação de um relator na Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor do Senado Federal.
No texto que justifica a proposta da lei, o senador Carlos Viana (PODEMOS-MG), autor do PL, pontuou que “os benefícios na compra de medicamentos fracionados, é a de que o consumidor adquire apenas a quantidade que precisa, economiza porque evita o desperdício, garante o tratamento completo no tempo e quantidade recomendados pelo médico e evita os riscos de intoxicação pelo consumo das sobras de medicamentos estocados em casa”.
No entanto, o texto já causa movimentação no setor que sinaliza se posicionar contra a possibilidade, apesar de não ser novidade e ressurgir de tempos em tempos. “O Sindusfarma sempre se posicionou muito contra ao fracionamento apenas cortando a cartela do medicamento e entregando um comprimido. Em um país em que a receita médica não é necessária para comprar medicamentos tarjados, fazer fracionamento sem estar devidamente em ambiente controlado pode trazer riscos sanitários graves ao consumidor”, acredita Mussolini.
Apesar de parecer simples, o processo não se resume a apenas destacar comprimidos da cartela ou cortá-la. O presidente do Sindusfarma afirma que caso o Brasil tivesse estrutura física nas farmácias para garantir a segurança e qualidade dos medicamentos, assim como o controle sobre a venda e manejo adequado, não veria problema na medida. Contudo, essa não é a realidade do país. Por isso, a entidade alerta sobre o risco para a saúde pública de se realizar o fracionamento sem a devida estrutura.
A indústria já fornece a hospitais embalagens para fracionamento, mas o ambiente é controlado de ponta a ponta, garantia que não haja desvio dos medicamentos ou perda da qualidade do produto. Médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e farmacêuticos acompanham todo o processo e fornecem apenas o essencial.
Outra possibilidade seria que os comprimidos já viessem com a embalagem picotada ou em blisters individuais, mas Mussolini aponta as dificuldades para tornar viável. “A grande questão é como você vai acomodar tudo isso, como caber dentro da farmácia”, alerta. Ele ainda aponta que os investimentos financeiros seriam expressivos, sem a garantia de resultados para a saúde da população e vendas.
A Abrafarma também tem um posicionamento contrário à proposta. Sergio Mena Barreto explica que os medicamentos em sua maioria já vêm em cartelas para o período necessário para o tratamento, podendo variar de composto para composto. Para ele, não há justificativa de saúde que torne essa proposta fundamentada.
“Quem vende fracionado, como os Estados Unidos, quer sair desse modelo. Hoje há um grande esforço para entregar a caixinha de produto lacrada, os frascos completos para o consumidor. Essa história de vender comprimidos separados é uma coisa antiga. Quem imagina um PL desse em um tempo que a gente precisa de mais segurança, mais garantia de procedência de produto e mais rastreabilidade?”, critica o CEO.
Precificação de medicamentos e funcionamento das farmácias
No caso da precificação dos medicamentos, a discussão sobre a revisão existe há pelo menos 10 anos. Atualmente, a CMED analisa o preço comercializado em uma cesta de países, que inclui Estados Unidos, França, Portugal, Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Espanha, Grécia e Itália. A partir daí, o Brasil adota o menor preço entre eles.
“A grande questão do Brasil é que é sempre o menor preço praticado em qualquer país da cesta. Isso pode bagunçar um pouco o mercado, porque você vai ter sempre o menor preço do mundo. Na Grécia, por exemplo, um anti-inflamatório tem o menor preço do mundo, mas o anti-hipertensivo pode não ter. Aqui no Brasil sempre vai ser menor, o que pode trazer um desbalanceamento de mercado e alguns produtos não serem lançados no país”, aponta Mussolini.
Por isso, o presidente da entidade sugere que haja uma mudança no esquema, para balancear os valores propostos. Também aponta que é preciso rever a discussão sobre a precificação de medicamentos referência que já possuem genéricos no mercado, ou seja, que em geral são mais baratos. Para ele, existem situações como essa que seria possível deixar o mercado se regular. Ainda, defende que o processo precisa ser mais célere.
Já a Abrafarma tem uma pauta principal junto à Anvisa, que é a revisão da RDC 44, que define as boas práticas para o funcionamento das farmácias e balizam o trabalham da vigilância sanitária. De acordo com o CEO, Sergio Mena Barreto, ela está desatualizada, já que nos últimos 14 anos houve mudanças através de leis e outras resoluções, como a autorização de aplicar vacinas e realizar exames de triagem.
“A vigilância segue a regulamentação vigente, então ela tem uma série de limitações. Em locais em que a vigilância é mais estruturada, leva em consideração a lei, mas em muitos locais depende da interpretação local. A gente tem cobrado da Anvisa legislações cada vez mais claras, que não deixem dúvidas”, explica o executivo.
No final de agosto, a Anvisa decidiu permitir de forma definitiva a entrega remota de medicamentos controlados, seguindo os mesmos passos da venda e entrega presencial nas farmácias, com conferência da receita médica e coleta prévia de assinatura do paciente. A medida já havia sido tomada na pandemia de forma temporária, o que fez a agência revisitar o texto. Contudo, a venda online segue proibida.
Apesar de Mena Barreto não apontar essa como uma demanda da associação, ele defende que “não faz sentido não vender online, se a gente tem a vida toda online hoje. Agora, como se dá esse aspecto da segurança e da garantia de que o consumidor não será prejudicado? Porque uma coisa é aquela pessoa que tem interesse em fazer uso correto, outra coisa é quem faz uso de forma indevida e sempre vai procurar brecha na regulamentação”.
Em tramitação
O projeto de lei sobre o fracionamento de medicamentos é um dos que mais preocupam o setor, mas não é o único. Existe um texto que autoriza a venda de medicamentos isentos de prescrição em supermercados em tramitação que segue sendo observado de perto pelas farmácias, principais atores contrários a essa proposta. Assim como ocorre em outros países do mundo, a ideia é que medicamentos considerados com menor potencial de risco sejam vendidos nas gôndolas de supermercados.
“Em muitas localidades do interior do País a presença de farmácias também é restrita, o que impede o acesso a tais produtos. Devemos olhar para o Brasil como um todo e considerar as diferenças regionais para definir quais estratégias devemos adotar para equilibrar ou minorar tais diferenças. Os supermercados e similares têm uma maior presença em todos os municípios brasileiros, por menor que sejam suas populações, diferentemente das farmácias, que se localizam em locais comercialmente mais viáveis, como os grandes centros urbanos”, escreveu o deputado Glaustin da Fokus (PODEMOS-GO), em justificativa para a proposição da lei.
A Abrafarma, no entanto, aponta que o Brasil possui mais de 90 mil farmácias em todo território, o que indicaria que falta de acesso não é um argumento válido para vender medicamentos em outros segmentos do comércio.
“Por que alguns países decidem vender medicamentos isentos de prescrição em supermercados? Porque esses países já resolveram o problema de acesso. Geralmente o governo ou o seguro saúde cobre o tratamento. Para desafogar os hospitais, já que se cobre tudo, decidem liberar a venda”, argumenta Barreto, no sentido de que lá fora o consumidor adquire medicamentos mais simples nesses estabelecimentos, uma vez que o tratamento de doenças é coberto de outra forma. “Mas é totalmente diferente do Brasil. A pessoa não paga pelo medicamento e não abandona o tratamento por falta de acesso. Aqui, 98% dos medicamentos no setor privado quem paga é o cidadão, a Farmácia Popular representa apenas 2%”.
Apesar de estar seguindo a tramitação normal do Congresso, o projeto de lei 1774/2019 ganhou notoriedade em agosto do ano passado, quando deputados tentaram emplacar um pedido de urgência para colocar o texto em votação. Apesar de ter uma votação expressiva, com 225 votos a favor, foi rejeitado o pedido, já que não obteve a quantidade mínima de votos, 257 deputados.
Em março de 2023, a deputada Adriana Ventura (NOVO-SP) foi designada relatora do projeto pela Comissão de Saúde da Câmara. O último andamento foi em abril, quando encerrou o prazo para as propostas de emendas ao projeto. De acordo com Mena Barreto, a Abrafarma segue acompanhando o tema, reforçando que há mais riscos que benefícios para a população.
Questionado sobre seu posicionamento sobre os medicamentos fracionados e vendas em supermercados, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) não respondeu a tempo do fechamento dessa reportagem.
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